terça-feira, 29 de abril de 2014

Cesárea forçada

Saiu na Folha de 3/4/14:

“Meu parto foi 'roubado', diz mãe forçada a fazer cesárea
Internada desde a madrugada de terça e obrigada a passar por uma cesárea por decisão da Justiça, a dona de casa Adelir Carmem Lemos de Goes, 29, disse ontem que pretende processar médicos e hospital por não ter conseguido fazer um parto normal.
‘Tive meu parto roubado’, disse por celular, da enfermaria do hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres (a 193 km de Porto Alegre).
Conforme antecipou a Folha ontem, a mulher, grávida de 42 semanas, foi levada por policiais ao hospital para passar pela cirurgia depois de a Justiça acatar um pedido do hospital e da Promotoria que alegavam ‘risco iminente de morte’ da mãe e da criança.
A unidade de saúde voltou a defender ontem a avaliação de duas médicas e disse que já havia sofrimento do bebê. ‘A correção dessa indicação médica foi confirmada no parto, devido à presença de mecônio [fezes] do nenê na cavidade abdominal da mãe, demonstrando sofrimento fetal’.
O promotor Octávio Noronha disse que a medida foi necessária devido à opinião ‘irredutível’ da mulher. ‘A vida da criança não pode ser deixada em segundo plano.’
A polêmica começou quando a gestante foi ao hospital com dores. A médica determinou que ela fizesse uma cesárea. O bebê, disse, estava sentado. Para ela, esse fato impedia um parto normal”.

Vamos imaginar que ela não estivesse grávida. O argumento de que a mãe corria risco de vida é juridicamente irrelevante. Desde que a mulher seja mentalmente capaz, ela pode recusar qualquer tratamento médico, da mesma forma como um paciente de câncer pode se recusar a fazer quimioterapia e a testemunha de jeová recusar transfusão de sangue. A atitude da lei brasileira nesse sentido é a de que se você quiser morrer ou sofrer e for capaz de tomar suas decisões consciente e livremente, cabe unicamente a você escolher.

Logo a juíza jamais poderia ter obrigado a mulher a submeter-se a qualquer procedimento cirúrgico.

Mas ela estava grávida, e esse é o grande complicador.

Se no momento da ordem judicial houvesse um bebê, a ordem seria incontroversa. Afinal, caberia à Justiça proteger o direito do menor. Se o pai resolve maltratar seu filho, a Justiça pode e deve intervir.

O problema é que no momento em que houve a ordem judicial, ainda não havia um bebê. Havia um feto. Até que o feto saia com vida do corpo da mulher e se torne um bebê, pela lei brasileira ele não tem direito. Ele tem mera expectativa de um dia vir a ter direitos. Entre tais expectativas de direito está a do direito à vida.

Mas tais expectativas, embora não sejam direitos em si, são protegias. Daí, por exemplo, o aborto ser crime.

Mas vale lembrar essa proteção da expectativa de vida não é algo absoluto. Tanto é assim que é possível abortar quando a gravidez põe em risco a vida da gestante ou é resultante de um estupro.

Bem, a magistrada se deparou com o direito à incolumidade física da mulher e a proteção da expectativa de vida, e optou pela segunda.

Infelizmente não há um certo ou errado nesse debate. Ser a favor de um ou de outro é questão de posicionamento pessoal e opinião. O que é inegável, contudo, é que a controversa existe porque pare da sociedade defende a primazia da sociedade sobre o corpo da mulher (da mesma forma como acontece com a proibição do aborto), e outros defendem o oposto.

O problema aqui é, infelizmente a questão da mulher e não a do corpo. Por exemplo, a Justiça não força um pai que se recusa a doar um rim ou medula para o filho que esteja com a vida em risco a se submeter ao procedimento médico.

A segunda controvérsia é saber se a médica errou.

Ela certamente quebrou seu dever de manter o sigilo profissional em relação à paciente.

O dever de manter o sigilo é tão importante que a violação do segredo profissional sem justa causa é crime que pode levar a um ano de prisão.

Mas, no Brasil, tal dever também não é absoluto. Segundo a lei, há crime se a revelação é sem justa causa..

Para saber o que é justa causa, precisamos olhar o Código de Ética Médica.

Só que o Código também não ajuda. Ele diz que é “vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”.

Lendo as duas normas juntas, elas dizem que a causa não é justa se o motivo não é justo. Ou seja, não esclarecem. Fica a cargo do médico (e, se houver a revelação, da Justiça) decidir se ao motivo é justo ou não.

Dizer que a opinião da mãe era irredutível e logo isso seria uma justa causa para recorrer à Justiça certamente não funciona porque, caso contrário, todas as vezes que um paciente recusasse tratamento (pense no exemplo do pai e a medula), o médico poderia quebrar seu sigilo profissional.

O Código, contudo, é claro ao dizer que na “investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo pena”.

Mas na investigação de um crime o crime já ocorreu. Por exemplo, se a gestante abortar, o médico não pode quebrar seu sigilo porque o aborto já ocorreu.

Mas no caso da reportagem acima, o fato estava em andamento e ainda não havia sido consumado.

E aqui entra a segunda exceção do Código: o médico pode violar seu sigilo se houver dever legal de fazê-lo.

O problema aqui é saber se a médica tem o dever.

Ainda que ela diga pode até ter o direito, dever e direito são coisas distintas. O exemplo clássico de dever de violar o sigilo médico é o do médico que examina o paciente por ordem judicial para apresentar um laudo médico. Mas não era esse o caso acima.

Mas mesmo que aceitássemos que era dever legal dela violar o sigilo do paciente porque, sem a cesariana, a mãe estaria cometendo um aborto, a questão continuaria polêmica. Afinal, mulheres com hipertensão, obesas etc, também têm um risco de aborto muito maior que mulheres saudáveis, e nem só por isso médicos podem ir à Justiça para obrigarem suas pacientes a fazerem regime ou meditação.

Do Blog Para Entender Direito

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