segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quem cria o boato é responsável pelo crime?

Saiu na Folha de 6/5/14:

“Enterro de mulher morta após boato vira comoção em Guarujá (SP)
Pelo menos uma centena de pessoas acompanhou na manhã desta terça-feira (6) o enterro da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33, morta após ter sido espancada na periferia de Guarujá (a 86 km de São Paulo) (...)
Fabiane foi linchada por moradores após eles acharem que ela sequestrava crianças para a realização de rituais de magia negra. De acordo com a Polícia Militar, contudo, não há nenhum indício de que a dona de casa tenha praticado tal crime”.

De Escola Base a Maria de Jesus, a história é tristemente simples: alguém inicia um boato. Outras pessoas, acreditando no boato, resolvem fazer justiça com as próprias mãos e acabam cometendo crimes.

A pergunta, contudo, é se quem iniciou o boato pode ser culpado pelos crimes cometidos por quem acreditou em suas mentiras.

No caso acima, por exemplo, quem disse que ela estava envolvida com sequestro de crianças pode ser condenado pela lesão corporal ou homicídio da vítima, junto com os linchadores?

Para que alguém seja condenado por um crime doloso, é necessário que a pessoa queira ou assuma o risco de cometer o crime.

É difícil – mas não impossível – argumentar que quem inicia um boato queira induzir alguém a cometer um crime.

Mas ele assume o risco de levar alguém a cometer um crime?

Aqui também o argumento é complicado porque embora a lei não exija que a pessoa visualize exatamente como o crime será cometido, é necessário que a seja ponderável que a conduta resultará no crime e que a pessoa conscientemente assuma tal risco.

O motorista que dirige a 200km por hora não querer matar o pedestre e provavelmente não visualizou exatamente como o acidente poderá ocorrer. Mas ele tem dados o suficiente para saber que a possibilidade de matar alguém que esteja atravessando a rua, esperando o ônibus na calçada ou em um outro veículo é grande porque sua conduta – dirigir em alta velocidade – cria uma probabilidade acima da média de que um acidente ocorra.

Já o motorista que está dirigindo com todos os cuidados também pode acabar matando alguém, mas é muito mais difícil argumentar que ele assumiu conscientemente qualquer risco já que sua conduta não cria uma possibilidade anormal de causar um acidente.

Quem gera o boato certamente cria um risco que não existia (assim como alguém que resolve dirigir cria um risco que não existiria se ele não tivesse entrado no carro). O problema para a Justiça é saber se é razoável argumentar que uma pessoa normal está conscientemente assumindo o risco de que seu boato vá levar outras pessoas a cometerem um crime. E é esse último passo que dificulta dizer que quem criou o boato responde dolosamente pela conduta de quem acreditou em sua mentira.

Mas ele pode estar cometendo um crime na modalidade culposa. Isso porque, quem age imprudentemente pode ser culpado pelas consequências de suas ações, se tais consequências eram previsíveis.

O resultado (morte) é obviamente involuntário. Se fosse voluntário, seria um crime doloso.

O que a lei exige são três elementos: os chamados nexos causal e normativo, e a previsibilidade objetiva.

Nexo causal significa que sua conduta (boato) foi responsável pela consequência criminosa (morte). Sem o boato, não teria ocorrido a morte. É o que ocorre com o assaltante que aponta a arma para o motorista que, com medo, acelera e atropela o pedestre: o assaltante é responsável pela morte do pedestre porque a reação do motorista era previsível.

Já nexo normativo significa que sua imprudência, negligência ou imperícia foi direta ou indiretamente a causa da morte. Ou seja, a morte não ocorreu por uma força maior ou um caso fortuito, mas porque criminoso foi imprudente ao criar uma mentira usando a imagem da vítima.

E a previsibilidade objetiva significa que uma pessoa normal conseguiria antever que sua ação poderia gerar tal consequência. Tal previsibilidade não é certeza: é apenas a antevisão de que tal conduta negligente, imprudente ou sem perícia gera um risco. (Fonte: Blog Para Entender Direito)



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