domingo, 18 de maio de 2014

O pacote de biscoito e o furto famélico

Saiu na Folha de 12/5/14:

“Polícia diz que mulher foi torturada e morta após furtar comida em SP
Três pessoas foram presas suspeitas de sequestrar e torturar uma mulher em Barueri, na Grande São Paulo. De acordo com a polícia, o crime teria acontecido após a vítima ter supostamente furtado um pacote de biscoitos.
A polícia prendeu Renata Fonseca da Silva, 27, Jackson Nunes Pereira, 21, e Valmir Lima de Oliveira, 27, após analisar um vídeo que mostra a manicure Ane Kelly Santos, 26, sendo torturada e morta. As imagens foram entregues na última sexta-feira a uma equipe do DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção a Pessoa) por uma pessoa que pediu anonimato.
De acordo com informações da secretaria de Segurança Pública, Renata Fonseca teria sido a mandante do crime. Um pacote de biscoitos que supostamente havia sido furtado da casa dela por Ane e uma cúmplice motivou o sequestro, a tortura e o assassinato.”

Às vezes uma pessoa faz tudo necessário para consumar o crime, o consuma, mas mesmo assim não terá cometido um crime.

O caso mais conhecido é o da legítima defesa. O criminoso põe em risco imediato a vida da vítima, a vítima reage e mata o criminoso. A vítima não terá cometido homicídio porque terá agido em legítima defesa. É o que os juristas chamam de excludente de ilicitude (ou de antijuridicidade): uma razão maior (o medo de ser morto) faz com que a conduta (matar o criminoso) não seja ilícita, ainda que a conduta (matar alguém), se não fosse por essa razão, fosse ilícita.

A outra excludente de ilicitude clássica é o furto famélico: quando alguém furta o mínimo necessário para sua subsistência. É a pessoa que furta o pão para comer, o remédio para o coração ou o cobertor para não morrer de hipotermia.

O furto famélico é um exemplo de estado de necessidade: a pessoa age de maneira criminosa para proteger um bem jurídico tão ou mais importante que aquele que esta ferindo. Ele furta (um crime contra o patrimônio) para proteger sua saúde ou vida.

É importante notar aqui que é furto famélico e não roubo famélico. A diferença é importante porque no roubo há violência ou grave ameaça contra a outra pessoa, e isso causa um reequilíbrio entre o direito protegido (vida ou saúde) e o direito ferido no roubo (incolumidade física, vida, saúde mental etc).

O furto famélico se restringe ao essencial. Furtar 100kg de arroz não é furto famélico porque ninguém necessita de 100kg de arroz para sobreviver por um ou dois dias. 

E óbvio que ele só é justificável para produtos essenciais para aquela pessoa. O milionário que furta 200g de arroz não pode alegar que é furto famélico porque ele não necessita daquele arroz para sobreviver. E o pobre (ou rico) que furta uma TV não pode alegar que é furto famélico porque ninguém necessita de TV para sobreviver.

Na reportagem acima, deixando de lado os crimes graves (a morte, tortura etc) e focando no alegado furto cometido pela vítima, a questão é saber se um pacote de biscoitos pode ser considerado furto famélico.

Do ponto de vista nutricional, o biscoito não é essencial. Muito pelo contrário. Mas para alguém que está com fome, qualquer coisa que apazigue a fome é uma dádiva. É por isso que a Justiça não olha o caso objetivamente (do ponto de vista da pessoa comum), mas subjetivamente (do ponto de vista de quem é acusado de ter cometido o crime): para aquela pessoa, naquele momento, aquele produto era necessário? E vale lembrar que a palavra chave aqui é necessidade. Um pacote de biscoito para saciar a gula não é necessário. UM pacote de biscoito para saciar a fome verdadeira pode, sim, ser considerado necessário.

Fonte: Para Entender Direito

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