terça-feira, 21 de abril de 2015

Em Portugal: Crianças impedidas de verem seus pais

Crianças impedidas de verem um dos seus pais pelo outro progenitor

Nos tribunais, sucedem-se as lutas, as denúncias de rapto, as súplicas por um simples telefonema. Em dezembro, o desespero é ainda maior


Era uma vez um pai que não via a filha há nove meses. Tudo começou quando, no final de umas férias em família, no Brasil, a mãe, brasileira, decidiu que não regressava a Portugal e que a criança de 3 anos ficaria com ela. Dois meses depois, o pai voltou ao Brasil e recebeu a notícia: a mulher queria o divórcio e não deixava a criança voltar. Zangada, moveu-lhe um processo por maus tratos e por afastamento do lar. Condenado em primeira instância e proibido de ver a criança, recorreu e o tribunal de segunda instância brasileiro anulou a primeira sentença.

De volta a Portugal, o pai moveu um processo para regulação parental. Tentava ligar para o Brasil mas as chamadas caíam, ou não eram atendidas. Enviava presentes que nunca eram entregues. Até que decidiu partir novamente.

Acompanhado do advogado, conseguiu que uma juíza ordenasse que a criança fosse levada, naquela hora, ao tribunal, para o pai a ver. Os olhos de Francisco (nome fictício, como o são todos os nomes de pais e crianças referidos no texto) brilharam. "Foi um momento lindo. Estivemos duas horas juntos, sempre a brincar. Abraçámo-nos tanto... os funcionários que presenciaram o encontro relataram que a nossa relação estava intacta." Era dezembro, mês de Natal e de presentes, de contos de fadas e de princesas.

E para a princesa Maria, o pai tinha levado uns sapatos da Cinderela. Mas ela tinha crescido tanto que já não lhe serviam. Ficaram os sapatos na caixa e o pai voou para Portugal.

Passaram mais 742 dias até que Maria voltasse a casa do pai. Tinha seis anos. "Quando chegou, vasculhou a casa toda à procura da outra família que lhe tinham dito existir, e que não encontrou", conta o pai. Vinte e três dias depois foi-se embora, para regressar em julho. "Sempre que minha filha veio, tive de acionar os mecanismos internacionais de rapto para garantir que ela entrava no avião.

Ainda assim, nesse julho de 2013, deveria cá ter estado 15 dias e só ficou oito. Neste verão, como houve o Mundial no Brasil, ficou cá quatro semanas. Agora, é suposto chegar no dia 13 para passar o Natal comigo, pela primeira vez em quatro anos." Francisco conseguiu, durante todo este tempo de ausência, falar com a filha quase diariamente. No início, inventaram uma família. Ela tinha três anos e o pai arranjou uns fantoches de dedo que formavam a família das sopas: havia o rei das sopas, a rainha careca, a filha consomé e o filho shot. Mais tarde, juntaram-lhe o Cavaleiro da Noite, que era malvado, e que aparecia sempre que Maria dava o "sinal de boicote", ou seja, que alguém iria desligar a ligação. "Chegámos a estar quatro horas no Skype", conta. Nunca é ele quem termina a chamada, é Maria quem lança a frase-chave: "Tem um dia feliz." E desligam.

O drama de ser alienado

Francisco é um dos muitos pais e mães que travam batalhas nos tribunais sempre longas e muitas vezes inglórias para verem os filhos que o outro progenitor decidiu "alienar ". É assim que comummente se designam estas situações: alienação parental. Uma figura que "não existe na lei e que representa uma série de comportamentos de um progenitor que, ao mesmo tempo que tenta denegrir a imagem do outro, não deixa o pai ou a mãe ver os filhos", explica Jaime Roriz, advogado ligado à Associação Pais Para Sempre.

Nestas situações, só há dois caminhos: ou pedir nova regulação parental ou comunicar pedidos de incumprimento quando um dos progenitores não faz o estabelecido pelo tribunal. "Em cerca de mil casos, consegui quatro condenações. Uma delas, de uma mãe que, por dois anos de incumprimento, foi multada em cem euros. Recorreu para a Relação, que baixou a multa para 50 euros", revela Jaime Roriz, considerando não só que os tribunais não dão garantias às crianças nesta situação, como que as punições são tão absurdas que infringir compensa. Vai mais longe, dizendo que muitos magistrados principalmente nos casos em que os alienadores são as mães tratam o assunto como há uns anos se tratava a violência doméstica: "Resolvam lá isso entre os dois." O juiz António José Fialho, que trabalha no Tribunal do Barreiro, também defende a criação de uma figura jurídica que classifique estes comportamentos. "A maioria dos tribunais trata estes casos como simples incumprimentos dos acordos de regulação parental, quando são muito mais do que isso: são um afastamento deliberado e injustificado.

E a garantia de execução é ainda mais complexa. Não se pode fazer isto com a polícia, porque é ainda pior para a criança." Ricardo Simões pertence à Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e não acredita que o problema esteja na lei, mas no modelo de intervenção: "Os tribunais têm de estar centrados nos problemas das crianças e não na lógica da divisão." A chave, acredita, é a mediação familiar. Dá o exemplo de França, onde esta existe dentro do tribunal, e o da Bélgica, onde os pais só chegam à sala de audiências depois de ultrapassados os conflitos.

"Quando a regra for a de que a criança deve conviver de forma tendencialmente igualitária com o pai e com a mãe, os conflitos vão diminuir", defende.

Portas trancadas

João e a companheira separaram-se pouco tempo depois de ela engravidar. Foi a avó da criança que lhe telefonou a dar a notícia: a bebé ia nascer. Correu para o hospital e, durante os primeiros seis meses da filha Carolina, conseguiu visitá-la três vezes por semana, em casa da mãe. Em novembro, mudança de planos: duas visitas semanais em casa da ama. "A bebé chorava nos meus braços e eu achava que não havia contacto suficiente para ela se sentir bem comigo." Duas semanas passaram e nova sentença saiu da boca da mãe: "Não passes tanto tempo em casa da ama que ela não se sente confortável." Mais uma vez, João acatou.

Até que, um dia, recebeu uma carta do tribunal, para regulação do poder parental.

"Nem levei advogado e chegámos a um acordo: duas visitas semanais em casa da ama, das 14 às 16 horas o que era difícil, estando a trabalhar, mas lá consegui -, visita anual no aniversário e nas manhãs de domingo, de 15 em 15 dias, na casa da ama também. A guarda e a responsabilidade parental eram da mãe." Foi nesta altura que João começou a parar para pensar: "Senti que fui tratado naquele tribunal como um irresponsável, ou um toxicodependente ou um ex-presidiário." Mas acatou.

Tudo se complicou quando a bebé foi batizada às escondidas do pai. Ele foi a casa da mãe, ela não lhe abriu a porta. Ele bateu com mais força, ela ameaçou chamar a polícia. Ele bateu com mais força ainda "pensei que a polícia me pudesse ajudar a ver a minha filha ". A polícia chegou e mandou-o embora.

Num dos domingos em que quis levar Carolina a dar um passeio, a ama trancou-o em casa. Quinze dias depois, nova tentativa.

A ama acabou por ceder, mas assim que João abriu a porta do elevador "apareceu a avó da criança aos gritos, acompanhada da polícia ". A partir daqui, a porta não mais se abriu.

João ia todos os dias a casa da ama, para fazer cumprir a ordem do tribunal, que carregava sempre consigo. E decidiu-se, finalmente, a procurar um advogado. Nove meses se passaram sem que visse a filha. No Natal do ano passado, com um boneco na mão, foi a casa da avó, para ver Carolina. Não atenderam o telefone, não abriram a porta e João foi à esquadra, com a ordem do tribunal. "Quando lá cheguei, ouvi no intercomunicador da polícia: 'O suspeito já não se encontra junto da residência'. O suspeito era eu."

Desistir, jamais

Os primeiros seis meses de divórcio de Joana correram normalmente. Tinha guarda partilhada com o ex-marido, e as crianças (Catarina, 12 anos, Pedro e Martim, de 10) passavam semanas alternadas em casa de cada um dos pais. "Nas primeiras férias, em agosto, foram com o pai para o Algarve por dez dias. Um dia, recebi um telefonema da minha filha, dizendo que não voltavam mais.

Durante dois meses e 16 dias não soube onde estavam e avancei com uma providência cautelar para fecharem as fronteiras. Durante esse tempo, só tinha contacto com o pai. Enviava-me e-mails a dizer que estava tudo bem e que se encontravam nesta ou naquela zona do país", recorda.

Joana sabia que as crianças teriam de voltar para a escola e, no primeiro dia de aulas, lá estava, como encarregada de educação.

"Quando chegaram, não quiseram cumprimentar-me. A Catarina chorava." Em outubro, começou a saga do tribunal.

Quando a filha mais velha entrou na sala, com um papel na mão para ser ouvida pelo juiz, achou que estava a dar uma pista para que alguém entendesse que ela estava instruída.

Mas ninguém percebeu. O juiz decretou que as crianças ficavam com o pai tendo em conta as palavras de Catarina e o facto de estarem com o pai há três meses -e que a mãe teria direito a visitas aos fins de semana de 15 em 15 dias.

O terror passou para dentro de casa.

"Quando o pai os trazia, eles agiam em bloco.

Não saíam do quarto, não almoçavam, não jantavam à mesa, iam juntos à casa de banho e diziam que me odiavam", conta. Depois foi acusada por três vezes de violência contra as crianças. Das três vezes, as queixas foram arquivadas. Mas tudo piorou. Ainda mais. As visitas foram reduzidas para um domingo de duas em duas semanas, sem pernoita.

Mais tribunal, mais correrias. Todos os dias Joana ia à escola ver os filhos. E todos os dias eles a ignoravam. Nova decisão judicial.

Fins de semana de 15 em 15 dias e mais uma quarta-feira. "O que eu queria era um acordo que ele cumprisse", desabafa Joana. Até que, num desses fins de semana, Catarina não quis voltar para o pai. "Fiquei aflita, disselhe que tinha de ir, o tribunal mandava, mas ela insistiu e está comigo há quatro meses e meio." Os rapazes continuam com o pai e deixaram de falar à irmã na escola.

A filha começou a contar o que se passava no outro lado da barricada. "Disse-me que pediu ao meu ex-marido: 'eu só quero ter pai e mãe'. Ele respondeu-lhe que ela só precisava de ter pai." Os rapazes, agora com 13 anos, nunca mais voltaram a casa da mãe. Mas a mãe vai todos os dias à escola vê-los. E telefona.

"É horrível. A chamada está em alta voz e eles tratam-me mal ao pé do pai. Não me chamam mãe. Sou a 'olha' ou 'a outra'. Quatro meses sem tocar num filho é muito tempo.

Vê-los ao longe é muito duro. O Pedro cresceu tanto..." Se não houver uma alteração de guarda, Joana não vê fim à vista para o pesadelo.

Acredita piamente que os filhos sabem que não desistirá deles. "Nunca tive férias com os meus filhos rapazes desde a separação. Nunca passei um Natal com eles. Mas não tenho nenhuma dúvida de que eles estão comigo."

Debaixo da árvore

Joana já sabe que só terá Catarina com ela no Natal. João aguarda, com ansiedade, a chegada de dia 25, em que, por ordem do tribunal, poderá estar com a sua filha Carolina entre as 10 e as 17 horas.

Maria deve aterrar no aeroporto de Lisboa no dia 13. "Está tudo pronto para quando ela chegar", explica Francisco, que, mais uma vez, acionou os mecanismos de rapto internacional e tem na mão uma sentença definindo que a criança tem de vir passar o Natal com o pai. Pela primeira vez, em quatro anos.

"Virá mesmo?", pergunta Francisco, já emocionado, a pensar na coleção de bonecas Ever After High, já embrulhada para lhe oferecer.

Depois, limpa um resto de lágrima e lembra-se do que a Cinderela dos pés grandes lhe disse um dia: "Não te preocupes, pai. Se as coisas não estão bem, é porque a história ainda não acabou."

Do portal Visão Solidária em Portugal

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