quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Para Justiça, obesidade pode ser deficiência


 
Saiu no Financial Times dessa semana (18/12/14):

“Obesity can be considered a disability, European court rules
The ECJ ruled that obesity is not a disability in itself, but that it could be considered one if it caused physical, mental or psychological problems that hampered a person’s ability to participate in work.”

A reportagem diz que esta semana a Corte de Justiça Europeia decidiu que embora a obesidade não seja por si só uma deficiência do ponto de vista jurídico, ela pode ser considerada uma deficiência do ponto de vista jurídico se ela causar problemas físicos, mentais ou psicológicos que atrapalhem o obeso no trabalho.

A causa era trabalhista (um trabalhador dinamarquês foi demitido e na reunião de desligamento sua obesidade foi mencionada, embora, segundo seu empregador, não tenha sido o motivo da demissão em si.

O debate é importante sobre como tratar a obesidade do ponto de vista jurídico, especialmente em um país como o Brasil, no qual o percentual de pessoas obesas está crescendo rapidamente.

Quando dizemos que obesidade é uma deficiência, um dos primeiros pensamentos que temos é “mas a pessoa ficou gorda porque comeu mais calorias do que gastou. Se é gorda, é por problema causado por ela mesma”.

Vamos deixar de lado por um segundo discussões sobre força de vontade, problemas psicológicos, ausência de espaços públicos para atividade física, problemas com transporte, mudança de renda, propaganda de comida e tantos outros que cercam uma frase como esta, e focar apenas no argumento em si que, em essência, diz que a pessoa obesa causa sua própria obesidade e, por isso, não deve ser considerado possuidor de uma deficiência.

Mas esse argumento parece esquecer que se uma pessoa causa a própria cegueira, paralisia física ou surdez, a pessoa continua sendo cega, paraplégico ou surdo. A causa em si é irrelevante para a determinação da existência dessas deficiências. A deficiência existe independente se decorre das ações ou omissões do deficiente, de outra pessoa, de causas naturais ou herança genética. Para a lei, ela existe e ponto.

Mas quando debatemos a obesidade, parece que esquecemos disso ou, se lembramos, pensamos logo em seguida “ah, mas a obesidade é reversível. Basta comer menos e ser menos sedentário”.

Ainda que parte desse argumento seja verdade, mais uma vez nos esquecemos que nem todas as deficiências são permanentes e nem todas as condições físicas ou psicológicas especiais são permanentes. O caso mais óbvio é o das gestantes. Ninguém é grávida. A mulher apenas está grávida. Nem só por isso deixamos de prover proteções legais que cuidam dessa circunstância física temporária. Daí a gestante ter direito a atendimento prioritário, não poder ser demitida, etc. O cadeirante que está cadeirante temporariamente terá proteções especiais ainda que venha a recuperar os movimentos mais adiante.

Logo, dizer que obesidade pode ser revertida também não é um argumento válido para dizer que o obeso não é merecedor de proteção legal enquanto estiver obeso.

Outros serão contra a obesidade como deficiência simplesmente porque a maior parte dos obesos está perfeitamente inserida na sociedade. Trabalham como os outros, namoram como os outros, e assim por diante. “Olhe o Jô Soares ou o Faustão”.

Mas isso é verdade?

Há milhares de estudos que mostram como obesos sofrem preconceitos no trabalho, ganham menos, têm mais dificuldades em encontrar relacionamentos, sofrem mais problemas de saúde, morrem mais cedo etc. Mesmo que pareçam não sofrer as consequências do peso, sofrem. Há exceções, claro, mas também há exceções entre outros deficientes físicos. Stephen Hawking e Steve Wonder são exceções que não negam a existência de um problema para a maioria. Não é porque um negro se tornou presidente dos EUA que diremos que negros não estão em desvantagem naquele país.

E assim por diante, podemos desmontar quase todos os argumentos contrários.

Por incrível que pareça, um dos poucos argumentos contrários a tratar a obesidade como deficiência que realmente sobrevive ao escrutínio lógico é o político-econômico: com a sociedade se tornando mais obesa, logo os obesos serão maioria e seria economicamente insustentável e politicamente incorreto tratar uma maioria crescente como minoria.

Em uma terra onde só haja cegos, ninguém pode alegar ser deficiente visual. Da mesma forma, em um mundo no qual a maioria for obesa, será difícil argumentar que eles são uma minoria que necessita de proteção especial da lei, simplesmente porque a sociedade irá se estruturar economicamente ao redor desta maioria.

Simplificando ao máximo esse argumento, em um mundo no qual a maioria é obesa, o obeso não precisa ir à loja de gordos para comprar roupas. Qualquer loja terá roupas que lhe sirvam. A minoria magra é que terá de procurar lojas especiais com roupas que lhe sirva.

Agora aplique esse mesmo raciocínio a transporte, escritórios, fábricas e o mundo será dos obesos. Logo, eles não necessitariam de proteção especial da lei. O mesmo vale do ponto de vista político: eles elegerão a maioria e seriam os magros que precisariam de ter sua voz ouvida como minoria.

Mas mesmo esse argumento tem um problema: ele é válido para situações consolidadas, e não situações de transição. O exemplo mais fácil para entender isso é olhar para a transição pós-apartheid na África do Sul. Os negros eram maioria mas ainda estavam em condição de desvantagem, logo a lei precisou intervir para dar-lhes condições de igualdade durante um período de transição.

Caso contrário, há o perigo da lei dificultar ou mesmo impedir a inclusão de uma vasta maioria e criar uma ditadura da minoria.
Para Entender Direito

Nenhum comentário:

Postar um comentário